CALIBRE OS PNEUS, CALIBRE OS PULMÕES E FORÇA NO PEDAL
por J. M. Tamas
- Juro, juro que se eu soubesse não o teria deixado entrar. São oito horas da noite e eu estou repetindo essa frase desde às onze da manhã, hora em que o Nivaldo saiu da minha casa, pois além de simpático ele é de uma pontualidade britânica. Em exatamente 30 minutos ele conseguiu transformar o meu belo domingo de sol em um tormento existencial familiar. Às exatamente dez e meia - e eu só sei que foi exatamente porque a campainha tocou junto com o cuco do relógio -, a campainha toca e eu vou atender, enquanto a minha mulher corre para a cozinha “pra preparar um delicioso cafezinho pras visitas”, e minha filha gruda na minha perna - ritual que se repete cada vez que toca a campainha: eu na porta com uma metade de gente se escondendo atrás de mim, e minha digníssima cara metade na cozinha preparando café para sei lá que visita.
- Bom dia, como vai o senhor? Que gracinha de menina ! Tá se escondendo atrás do papai, é? Como é o seu nome, hein?
Isso tudo disse o Nivaldo antes que eu pensasse em alguma coisa.
- Bom dia, foi a única coisa que eu consegui falar antes que ele voltasse ao ataque.
- Eu gostaria de discutir alguns problemas do nosso bairro com o senhor.
Eu esqueci de dizer que o Nivaldo é um desses rapazes que a gente viu nascer, crescer, jogar bola na rua e entrar para a faculdade. Ou seja, um representante legítimo do bairro em que moramos.
- Veja só o senhor que o crescimento desordenado das cidades tem provocado uma aglomeração humana que foge completamente aos índices suportáveis para uma vida saudável. Veja, por exemplo, que os ruídos e a poluição provocados por automóveis, ônibus e caminhões dentro das grandes cidades já ultrapassaram há muito o limite suportável pelo ser humano. E o senhor sabe pra quê? Para andar a
Nesse momento ele me estendeu uma coisa tipo apostila, que eu só consegui perceber que eram dados de uma pesquisa. E voltou imediatamente ao ataque.
- O senhor não acha um absurdo fazer carros tão velozes para andar a uma média de
Eu não sei se para minha sorte ou azar, entrou em cena nesse momento a minha prezada senhora com seu “delicioso cafezinho pras visitas”.
- Olha o cafezinho. Olá, Nivaldo, como vai sua mãe? Aceita um cafezinho? Tá fresquinho!
- Não, obrigado.
Minha digníssima esposa colocou, muito surpresa, a bandeja na mesinha de centro e sentou-se na poltrona, um tanto estarrecida.
- A senhora entende que a enorme quantidade de cafeína existente no café, somado ao açúcar utilizado para adoçá-lo, provocam no organismo uma aceleração...
E eu não quis saber aceleração de quê.
- Por favor, Nivaldo, o automóvel a
- Não economiza nada. Muito pelo contrário, gasta mais, pois a aceleração e a desaceleração constantes causada pelos engarrafamentos são responsáveis pelas maiores taxas de consumo de combustível nos grandes centros urbanos - e me estendeu outra apostila com dados de uma pesquisa qualquer sobre combustível.
A essa altura eu tinha quase certeza de que estavam sendo lançadas, dentro da minha casa, as bases de um partido ecológico, ou que o Nivaldo queria me vender uma coleção do tipo “Enciclopédia da Vida Natural”. E foi nesse exato momento que a metade de gente que continuava grudada na minha perna - benditas sejam as crianças - fez a pergunta que faltava.
- Papai, o que o moço quer, hein?
- Era exatamente sobre isso que eu ia falar agora, respondeu de imediato o Nivaldo. Eu estou aqui como representante de uma campanha nacional que tem como objetivo incentivar as pessoas a trocar seus automóveis usados por bicicletas novas. Veja o senhor: se todas as pessoas fossem ao trabalho de bicicleta, a economia de combustível seria fenomenal, as populações dos grandes centros urbanos ficariam livres do barulho e da fumaça e as cidades seriam mais humanas! Além disso, praticando um esporte saudável, todos ficariam mais bem dispostos para a batalha do dia-a-dia.
- Mas, Nivaldo, o que será feito dos carros? Quem vai comprar todos esses automóveis? - perguntei meio atônito.
- Exportação, meu caro. Exportar é a solução. Divisas para o país! O senhor já imaginou, hoje domingo, o senhor e a sua família toda andando de bicicleta juntamente com outras famílias do nosso bairro, numa cidade sem poluição, com as ruas calmas e silenciosas, os passarinhos cantando nas árvores ...
- Tá bom, Nivaldo. Tá bom! Você tem todo o meu apoio. O que eu preciso fazer.
- Basta assinar a nossa lista de apoio à campanha, que já conta com 50 mil assinaturas em todo o país. E esse catálogo aqui é para o senhor escolher o seu PLANO DE TROCA. O senhor tem várias opções, desde trocar o seu carro muito velho por uma bicicleta muito nova, até trocar o seu automóvel muito novo por várias bicicletas novas e um apartamento usado. São ao todo 183 planos com as mais variadas opções. Para qualquer orientação, basta o senhor me telefonar. E agora me dá licença que eu tenho que visitar outras pessoas. Até logo e muito obrigado pelo seu apoio.
E foi assim que, exatamente quando o cuco batia onze horas, o Nivaldo fechou a porta e partiu como um cometa, levando a minha assinatura e me deixando com um PLANO DE TROCA na mão, um conflito na cabeça e uma filha que não pára de repetir:
- Papai, eu quero a bicicleta do moço!
texto publicado no jornal Citibank News nº 80 de fevereiro de 1982
revisado pelo autor em agosto de 2007
2 Comments:
É o meu pai pai!
You write very well.
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